O filme La Jetée (1962), de Chris Marker ¹, é uma obra singular que subverte a linguagem cinematográfica ao construir sua narrativa quase inteiramente por meio de imagens fixas. Essa escolha estética radical transforma a experiência do tempo e da memória, colocando o espectador em um estado de contemplação e estranhamento. A história, uma distopia pós-apocalíptica sobre um homem enviado ao passado para encontrar um futuro possível, utiliza a fotografia como meio para explorar a percepção do real e a fragilidade da lembrança.
Chris Marker (1921-2012) foi um cineasta, escritor e fotógrafo francês, conhecido por seu trabalho inovador no cinema ensaístico e experimental. Seu interesse pela relação entre imagem, memória e política permeia grande parte de sua filmografia, tornando-o uma das figuras mais influentes do cinema de vanguarda. Em La Jetée, Marker combina sua sensibilidade visual com uma narrativa filosófica sobre o tempo, a identidade e a inevitabilidade do destino. O filme foi uma de suas obras mais emblemáticas e inspirou diversas produções, incluindo 12 Monkeys (1995), de Terry Gilliam.
A justaposição de imagens estáticas, acompanhadas por narração e som, cria um efeito hipnótico que questiona a própria natureza do cinema e da recordação. Ao invés de um fluxo contínuo de eventos, o filme apresenta fragmentos de momentos, sugerindo que a memória se organiza como uma sequência de imagens mentais, sempre sujeitas à reconstrução e ao esquecimento. Esse aspecto dialoga com investigações artísticas sobre arquivo e a relação entre imagem e tempo, tornando-se uma referência para trabalhos que exploram a identidade e a instabilidade da lembrança.
A fotografia em La Jetée possui um caráter documental e ao mesmo tempo poético, evocando um ambiente de ficção científica que se ancora em registros visuais do mundo real. As imagens granuladas, os fortes contrastes entre luz e sombra e a disposição das cenas criam uma atmosfera onírica e ao mesmo tempo melancólica. Cada quadro funciona como um vestígio do passado, reforçando a ideia de que a memória é sempre mediada por imagens. Em um dos momentos mais marcantes do filme, há um único instante de movimento: os olhos da mulher piscam, criando um choque emocional no espectador e rompendo, por um breve momento, a imobilidade narrativa.
O desfecho do filme enfatiza a circularidade do tempo e a inevitabilidade do destino. O protagonista, que desde criança era obcecado pela lembrança de um homem caindo em um aeroporto, descobre, ao voltar no tempo, que ele próprio era esse homem e que seu destino estava selado desde o início. Esse final trágico ressignifica toda a narrativa, reforçando a noção de tempo como um ciclo fechado e de memória como um espaço de predestinação e repetição.
Apesar de sua inovação formal e profundidade conceitual, La Jetée pode ser considerado desafiador para espectadores acostumados a narrativas tradicionais. Sua abordagem experimental e ausência de ação convencional exigem um engajamento contemplativo, o que pode afastar aqueles que buscam uma experiência cinematográfica mais fluida. No entanto, essa estrutura também amplia seu impacto, tornando-o uma obra que desafia os limites do cinema e da memória visual.
Ainda hoje, La Jetée se mantém relevante ao discutir a percepção do tempo em uma era saturada por imagens e marcada pela instantaneidade digital. A fragmentação da narrativa e a reflexão sobre memória dialogam com a maneira como as imagens contemporâneas são produzidas, arquivadas e reinterpretadas. Em um mundo onde a tecnologia permite a manipulação constante do passado e do presente, a obra de Marker questiona até que ponto as imagens moldam nossa percepção da realidade e como a memória coletiva é construída e distorcida. Sua abordagem estética e filosófica ressoa especialmente em projetos que exploram a materialidade da fotografia, a reconfiguração da história por meio de arquivos visuais e a relação entre identidade e tempo.
1.La Jetée (1962), de Chris Marker https://deeperintomovies.net/journal/archives/103
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