R 1 — Espólio de Fernando Lemos


“Não sei desenhar o meu endereço.” A frase de Fernando Lemos evoca a impossibilidade de fixar um lugar de pertencimento, tanto física quanto psicologicamente. Mais do que um simples deslocamento geográfico, ela sugere um estado de desorientação, onde a identidade se desfaz antes mesmo de se afirmar. Não se trata apenas da ausência de um lar, mas da impossibilidade de nomeá-lo, de traçar um contorno seguro onde se possa existir sem incerteza.


Ser estrangeiro não significa apenas habitar um território que não é seu, mas sentir que nenhum espaço pode ser chamado de lar. Essa sensação fragmenta a percepção do eu, deixando-o suspenso entre o que já foi e o que ainda não se tornou. O deslocamento não é apenas uma mudança de lugar, mas uma condição interna, um exílio silencioso que separa o sujeito daquilo que o rodeia.


Há uma violência nesse estado de suspensão. A ausência de raízes gera um abismo entre a experiência e a compreensão, tornando o mundo algo inatingível, como se a realidade estivesse sempre um passo adiante, recusando-se a ser capturada. A angústia surge desse intervalo entre estar e não estar, entre reconhecer e ser reconhecido.


Ao mesmo tempo, esse vazio carrega um paradoxo. Se não há morada fixa, também não há limites definitivos. O estrangeiro, ao não pertencer, move-se entre múltiplas possibilidades, escapando de definições rígidas. A identidade torna-se transitória, aberta à reinvenção, feita de camadas que nunca se estabilizam completamente.


Talvez, no fim, não haja um endereço a ser desenhado porque o pertencimento não é um ponto fixo, mas um trajeto interrompido. A identidade não é uma casa sólida, mas um mapa em constante mutação, onde as linhas se desfazem antes de serem compreendidas. O estrangeiro carrega consigo não apenas a ausência de um lugar, mas a consciência de que a busca por ele é, em si, uma jornada sem destino final.




Excerto: “Não sei desenhar o meu endereço.”

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