R 1 — Espólio de Fernando Lemos


“Não sei desenhar o meu endereço.” A frase de Fernando Lemos evoca a impossibilidade de fixar um lugar de pertencimento, tanto física quanto psicologicamente. Mais do que um simples deslocamento geográfico, ela sugere um estado de desorientação, onde a identidade se desfaz antes mesmo de se afirmar. Não se trata apenas da ausência de um lar, mas da impossibilidade de nomeá-lo, de traçar um contorno seguro onde se possa existir sem incerteza.


Ser estrangeiro não significa apenas habitar um território que não é seu, mas sentir que nenhum espaço pode ser chamado de lar. Essa sensação fragmenta a percepção do eu, deixando-o suspenso entre o que já foi e o que ainda não se tornou. O deslocamento não é apenas uma mudança de lugar, mas uma condição interna, um exílio silencioso que separa o sujeito daquilo que o rodeia.


Há uma violência nesse estado de suspensão. A ausência de raízes gera um abismo entre a experiência e a compreensão, tornando o mundo algo inatingível, como se a realidade estivesse sempre um passo adiante, recusando-se a ser capturada. A angústia surge desse intervalo entre estar e não estar, entre reconhecer e ser reconhecido.


Ao mesmo tempo, esse vazio carrega um paradoxo. Se não há morada fixa, também não há limites definitivos. O estrangeiro, ao não pertencer, move-se entre múltiplas possibilidades, escapando de definições rígidas. A identidade torna-se transitória, aberta à reinvenção, feita de camadas que nunca se estabilizam completamente.


Talvez, no fim, não haja um endereço a ser desenhado porque o pertencimento não é um ponto fixo, mas um trajeto interrompido. A identidade não é uma casa sólida, mas um mapa em constante mutação, onde as linhas se desfazem antes de serem compreendidas. O estrangeiro carrega consigo não apenas a ausência de um lugar, mas a consciência de que a busca por ele é, em si, uma jornada sem destino final.




Excerto: “Não sei desenhar o meu endereço.”

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R 2 - Albert Camus – O Estrangeiro



Em O Estrangeiro, Albert Camus apresenta a história de Meursault, um homem que vive com uma apatia radical em relação ao mundo e aos acontecimentos ao seu redor. A sua falta de envolvimento emocional, tanto diante da morte da mãe quanto do seu próprio julgamento, transforma-o numa figura paradoxal: ao mesmo tempo que é protagonista da sua vida, age como um observador distante, sem tentar justificar as suas ações ou procurar um sentido para elas.


A narrativa explora a filosofia do absurdo, conceito central no pensamento de Camus. O absurdo surge do choque entre a busca humana por sentido e um universo indiferente, onde nenhuma lógica ou moral superior organiza os acontecimentos. Meursault incorpora essa condição ao não oferecer explicações para o que faz ou sente, recusando-se a desempenhar o papel que a sociedade espera dele. O seu comportamento é visto como uma ameaça, pois desafia a necessidade humana de interpretar o mundo através de significados pré-estabelecidos.


O julgamento de Meursault revela a imposição da ordem social sobre a existência individual. A sociedade não o condena apenas pelo crime cometido, mas pela sua recusa em aderir às normas emocionais e morais convencionais. O que está em julgamento não é apenas um ato, mas a sua incapacidade de simular sentimentos que tornariam a sua presença mais aceitável para os outros. Esse processo evidencia como a indiferença pode ser mais perturbadora do que a violência, pois confronta a ilusão de controle e coerência que sustenta as relações humanas.


No desfecho do romance, Meursault aceita plenamente a sua condição absurda. Ao abandonar qualquer esperança de sentido ou redenção, alcança uma forma de liberdade. Sua aceitação do absurdo não é uma derrota, mas uma libertação das expectativas impostas pelo mundo. Camus sugere que a verdadeira revolta não está em resistir ao absurdo, mas em aceitá-lo sem buscar explicações reconfortantes.


Assim, O Estrangeiro apresenta um protagonista que personifica a condição humana no universo do absurdo, desafiando as convenções que sustentam a ilusão de um mundo ordenado. A obra questiona a relação entre identidade, moralidade e o papel das emoções na construção da sociedade, deixando o leitor diante da inevitável reflexão sobre a fragilidade dos significados que conferimos à existência.



Excerto: “Hoje, a mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei.”

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Hannah Wilke: Brushstrokes, 1992

R 3— Julia Kristeva – O conceito de Abjeção



O conceito de abjeção, desenvolvido por Julia Kristeva ¹, refere-se àquilo que perturba as fronteiras do sujeito, evocando simultaneamente repulsa e estranheza. A abjeção manifesta-se naquilo que não é completamente interno nem externo, mas ocupa uma posição liminar, desestabilizando as noções de identidade e ordem simbólica.

Esse processo ocorre quando algo que deveria ser expulso ou separado do sujeito retorna de forma inquietante, ameaçando a estrutura da subjetividade. A presença do abjeto provoca um desconforto visceral, pois revela aquilo que é rejeitado para que a identidade se mantenha estável. Esse fenômeno pode ser observado na maneira como certos corpos deslocados, fluidos orgânicos ou imagens de degradação provocam reações de aversão e fascínio ao mesmo tempo.

A abjeção, ao romper com as fronteiras do que é considerado aceitável, desafia convenções estéticas e sociais, tornando-se um elemento recorrente na arte e na teoria contemporânea. O confronto com o abjeto não apenas expõe as fragilidades das estruturas simbólicas, mas também sugere uma reflexão sobre a relação entre identidade, exclusão e os limites do corpo e da representação.


1. Kristeva, Julia. Poderes do Horror: Ensaio sobre a Abjeção. Paris: Éditions du Seuil, 1980. Disponível em:

https://www.academia.edu/18298036/Poderes_do_Horror_de_Julia_Kristeva_Cap%C3%ADtulo_1.


2. Vídeo sobre Julia Kristeva e o conceito de Abjeção:



Explora como o que nos causa repulsa está diretamente ligado às fronteiras do eu e do outro. O desconforto gerado pelo polvo deslocado em espaços cotidianos encontra um paralelo nesse conceito.



 
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R 4 — Stalker (1979) - A Zona como Interstício

Direção: Andrei Tarkovsky



O filme Stalker, de Andrei Tarkovsky, propõe uma jornada a um espaço enigmático e instável chamado Zona, onde as regras da realidade se desconstroem e a verdade nunca é entregue de forma direta. Dentro deste território, a promessa de um lugar que concede desejos é constantemente frustrada pela hesitação dos personagens, que nunca chegam ao centro do mistério. O espaço da Zona não é apenas geográfico, mas também psicológico, remetendo a um estado de suspensão entre o desejo e a impossibilidade.

Esta mesma noção de intervalo, de um espaço onde tudo está por acontecer mas nunca se concretiza plenamente, encontra eco no conceito central do meu projeto Interstício. Tal como os personagens de Stalker vagueiam sem certezas, enfrentando suas inseguranças e medos, o artista sem obra habita um espaço de dúvida e espera, onde a criação parece estar sempre à beira de se manifestar, mas permanece em suspensão.

O ritmo do filme, marcado por planos longos e composições visualmente densas, amplifica a sensação de hesitação e inquietude. Tarkovsky trabalha com o tempo de maneira dilatada, permitindo que a atmosfera do filme crie um peso quase físico. Em Interstício, esse peso se materializa no polvo congelado, deslocado em espaços banais, tornando-se uma metáfora visual para o bloqueio criativo e para a angústia da inércia artística.

Outro ponto de contato entre Stalker e o meu projeto é a tensão entre realidade e expectativa. No filme, nunca há uma resposta clara sobre se a Zona realmente concede desejos ou se tudo não passa de uma construção ilusória alimentada pela fé dos personagens. Em Interstício, o deslocamento do polvo para cenários cotidianos cria uma estranheza semelhante, onde a banalidade e o absurdo se sobrepõem, gerando um espaço de interpretação aberto.

Por fim, Tarkovsky usa texturas visuais — água, ferrugem, paisagens degradadas — para criar um ambiente sensorial onde o tempo parece corroído. No meu trabalho, a materialidade do polvo e sua relação com os espaços onde é colocado também operam nessa lógica, onde o que é familiar se torna inquietante e onde a própria criação artística é colocada em crise.

Se Stalker é um filme sobre a travessia de um território incerto, Interstício é uma investigação sobre habitar esse território. Ambos lidam com a impossibilidade de respostas definitivas, com o desconforto da espera e com a fragilidade do desejo de criação.



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R 5 — Andrei Tarkovsky – O Espelho (1975)


O filme O Espelho (1975), de Andrei Tarkovsky, é uma obra profundamente subjetiva que desafia estruturas narrativas lineares ao abordar memória e identidade de forma fragmentada. Mesclando recordações pessoais, eventos históricos e imagens poéticas, Tarkovsky constrói uma experiência cinematográfica que reflete a fluidez da memória e a impossibilidade de uma identidade fixa e estável. O filme transita entre diferentes tempos e perspectivas, sobrepondo passado e presente, realidade e sonho, sem demarcações rígidas.

A narrativa, composta por reminiscências soltas, alterna entre a infância, a vida adulta e o impacto das gerações anteriores, evidenciando como a identidade se constrói a partir de fragmentos da memória e das influências familiares. Tarkovsky utiliza recursos como a repetição de imagens, transições suaves entre diferentes épocas e sequências que evocam uma sensação de déjà vu, reforçando a ideia de que a identidade não é um bloco homogêneo, mas um campo de tensões entre o vivido, o lembrado e o imaginado.

Essa abordagem ressoa com projetos artísticos que investigam a memória de forma não convencional, como aqueles que lidam com arquivos visuais, fotografia e reinterpretação de imagens. A fluidez temporal e a sobreposição de diferentes registros no filme encontram eco em trabalhos que exploram a identidade como um processo instável e permeável.

No contexto do projeto, O Espelho traz uma reflexão sobre a impossibilidade de fixar a memória em uma única imagem ou narrativa definitiva. Assim como Tarkovsky desconstrói a linearidade para explorar uma percepção mais subjetiva e emocional da passagem do tempo, a fotografia e a colagem podem operar da mesma forma, evocando memórias, reconfigurando arquivos e ampliando a leitura das imagens para além do que é imediatamente visível. O filme demonstra como a identidade se dá em camadas, em um jogo entre presença e ausência, entre o que se vê e o que se sente, reforçando a ideia de que recordar é sempre reinterpretar.

Apesar de sua profundidade visual e poética, O Espelho pode ser considerado hermético e desafiador para alguns espectadores. Sua ausência de uma estrutura narrativa convencional exige um envolvimento sensorial e emocional que pode afastar quem busca um enredo mais linear. Essa experimentação radical, embora essencial para a proposta do filme, levanta o debate sobre o equilíbrio entre estética e acessibilidade, questionando até que ponto uma obra deve se abrir à interpretação sem perder seu impacto conceitual.

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R 6 — Frida Orupabo

Frida Orupabo ¹, artista norueguesa-nigeriana nascida em 1986, utiliza a colagem para questionar identidade, desconstrução e representação do corpo. Com formação em sociologia, sua prática emerge de experiências pessoais e da ausência de representações que expressem sua identidade racial e de gênero. Suas obras combinam fotografias de arquivos históricos, imagens digitais e elementos gráficos, criando composições que subvertem narrativas convencionais.

Ao sobrepor fragmentos desconectados, suas colagens tensionam visibilidade e apagamento, desafiando estereótipos e sugerindo novas leituras. A sensação de corpos em suspensão reflete deslocamento e instabilidade da identidade. Seu trabalho se expande no meio digital, fomentando debates sobre autoria, apropriação e memória visual.

Esse processo em sua obra não apenas denuncia a violência histórica contra corpos marginalizados, mas também propõe novas articulações visuais. Ao desconstruir e remontar imagens, Orupabo evidencia a multiplicidade da identidade e a resistência por meio da reapropriação. Seu trabalho ultrapassa a materialidade da colagem, incentivando um olhar crítico sobre os mecanismos visuais que moldam a percepção do corpo e da história.

Ao tornar a desconstrução central em sua prática, Orupabo questiona as narrativas visuais e como imagens são apropriadas, distorcidas ou ressignificadas. Seu trabalho ressoa com uma geração de artistas que usam a colagem e a desconstrução para desafiar estruturas de poder e evidenciar as tensões entre memória, identidade e representação.




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R 7 —  La Jetée (1962)Chris Marker



O filme La Jetée (1962), de Chris Marker  ¹, é uma obra singular que subverte a linguagem cinematográfica ao construir sua narrativa quase inteiramente por meio de imagens fixas. Essa escolha estética radical transforma a experiência do tempo e da memória, colocando o espectador em um estado de contemplação e estranhamento. A história, uma distopia pós-apocalíptica sobre um homem enviado ao passado para encontrar um futuro possível, utiliza a fotografia como meio para explorar a percepção do real e a fragilidade da lembrança.

Chris Marker (1921-2012) foi um cineasta, escritor e fotógrafo francês, conhecido por seu trabalho inovador no cinema ensaístico e experimental. Seu interesse pela relação entre imagem, memória e política permeia grande parte de sua filmografia, tornando-o uma das figuras mais influentes do cinema de vanguarda. Em La Jetée, Marker combina sua sensibilidade visual com uma narrativa filosófica sobre o tempo, a identidade e a inevitabilidade do destino. O filme foi uma de suas obras mais emblemáticas e inspirou diversas produções, incluindo 12 Monkeys (1995), de Terry Gilliam.

A justaposição de imagens estáticas, acompanhadas por narração e som, cria um efeito hipnótico que questiona a própria natureza do cinema e da recordação. Ao invés de um fluxo contínuo de eventos, o filme apresenta fragmentos de momentos, sugerindo que a memória se organiza como uma sequência de imagens mentais, sempre sujeitas à reconstrução e ao esquecimento. Esse aspecto dialoga com investigações artísticas sobre arquivo e a relação entre imagem e tempo, tornando-se uma referência para trabalhos que exploram a identidade e a instabilidade da lembrança.

A fotografia em La Jetée possui um caráter documental e ao mesmo tempo poético, evocando um ambiente de ficção científica que se ancora em registros visuais do mundo real. As imagens granuladas, os fortes contrastes entre luz e sombra e a disposição das cenas criam uma atmosfera onírica e ao mesmo tempo melancólica. Cada quadro funciona como um vestígio do passado, reforçando a ideia de que a memória é sempre mediada por imagens. Em um dos momentos mais marcantes do filme, há um único instante de movimento: os olhos da mulher piscam, criando um choque emocional no espectador e rompendo, por um breve momento, a imobilidade narrativa.

O desfecho do filme enfatiza a circularidade do tempo e a inevitabilidade do destino. O protagonista, que desde criança era obcecado pela lembrança de um homem caindo em um aeroporto, descobre, ao voltar no tempo, que ele próprio era esse homem e que seu destino estava selado desde o início. Esse final trágico ressignifica toda a narrativa, reforçando a noção de tempo como um ciclo fechado e de memória como um espaço de predestinação e repetição.

Apesar de sua inovação formal e profundidade conceitual, La Jetée pode ser considerado desafiador para espectadores acostumados a narrativas tradicionais. Sua abordagem experimental e ausência de ação convencional exigem um engajamento contemplativo, o que pode afastar aqueles que buscam uma experiência cinematográfica mais fluida. No entanto, essa estrutura também amplia seu impacto, tornando-o uma obra que desafia os limites do cinema e da memória visual.

Ainda hoje, La Jetée se mantém relevante ao discutir a percepção do tempo em uma era saturada por imagens e marcada pela instantaneidade digital. A fragmentação da narrativa e a reflexão sobre memória dialogam com a maneira como as imagens contemporâneas são produzidas, arquivadas e reinterpretadas. Em um mundo onde a tecnologia permite a manipulação constante do passado e do presente, a obra de Marker questiona até que ponto as imagens moldam nossa percepção da realidade e como a memória coletiva é construída e distorcida. Sua abordagem estética e filosófica ressoa especialmente em projetos que exploram a materialidade da fotografia, a reconfiguração da história por meio de arquivos visuais e a relação entre identidade e tempo.


1.La Jetée (1962), de Chris Marker  https://deeperintomovies.net/journal/archives/103



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R 8 — Justine Kurland: SCUMB Manifesto e a Desconstrução da Autoria

Justine Kurland ¹ radicaliza sua relação com a fotografia e a autoria em SCUMB Manifesto (Society for Cutting Up Men’s Books), um trabalho que ecoa o tom provocador do SCUM Manifesto de Valerie Solanas. O projeto de Kurland não apenas rejeita a presença masculina no discurso fotográfico, mas propõe uma ação concreta de apagamento simbólico: rasgar e destruir livros de fotografia feitos por homens para criar algo novo a partir de seus fragmentos. Esse gesto performativo não é apenas uma crítica ao cânone patriarcal, mas uma reconfiguração da própria materialidade da fotografia como território de poder.

Kurland desafia a sacralidade do livro como um repositório intocável da história da arte, reivindicando o direito de desmontar a tradição fotográfica dominada por homens. Ao rasgar, remontar e fotografar essas páginas destruídas, a artista propõe uma metáfora visual para o colapso da autoridade masculina e a possibilidade de reconstrução de um novo olhar. No entanto, a ação levanta questões: destruir o passado é suficiente para criar um novo futuro? Até que ponto esse gesto é subversivo e não apenas reativo?

Se por um lado SCUMB Manifesto materializa um rompimento com a tradição, por outro, ainda opera dentro da lógica de confronto direto, um paradigma que pode reforçar a centralidade do mesmo sistema que busca desmantelar. Ao destruir os livros de mestres da fotografia, Kurland os reinscreve em seu discurso, ainda que na posição de antagonistas. Assim, o projeto provoca um paradoxo: a anulação da autoridade masculina não se converte necessariamente em um novo sistema, mas sim em um embate contínuo com a tradição.

O projeto dialoga com a ideia de ‘morte do autor’, na medida em que rechaça a autoria como um pedestal inquestionável, mas também levanta a questão de quem detém o poder de reescrever a história. A destruição como método de criação pode ser lida como um ato de resistência ou um gesto iconoclasta sem resolução definitiva. Em um campo onde a fotografia já está sendo desmaterializada pela era digital, a recusa da permanência e a escolha pela fragmentação se tornam ainda mais significativas.

Kurland não apenas desconstrói imagens, mas também reconfigura o que significa fazer parte de uma tradição artística. SCUMB Manifesto não é apenas um ataque ao cânone masculino, mas um questionamento sobre como a fotografia pode ser usada como ferramenta de reescrita e reapropriação. Sua obra expõe a complexidade da luta por novos paradigmas na arte, onde o gesto de destruição pode ser simultaneamente libertador e insuficiente para fundar um novo mundo visual.


1. SCUMB Manifesto by Justine Kurland - Family of Man, 2019. Courtesy of High Pictures Generation https://www.anothermag.com/art-photography/gallery/11670/scumb-manifesto-by-justine-kurland/3 2. Hannah Höch https://www.theguardian.com/artanddesign/2014/jan/13/hannah-hoch-whitechapel-review 3. Barbara Kruger https://www.tjapan.jp/art/17416271?page=9









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R 9 — Hans Bellmer: A Desconstrução do Corpo e a Reconfiguração da Forma Humana


Hans Bellmer (1902-1975) ¹ foi um artista alemão cujo trabalho desafiou as convenções da forma humana através da desconstrução do corpo, questionando a normatividade e os limites da representação. Seu trabalho mais conhecido, as "Bonecas" (Les Poupées), apresenta figuras femininas desmontáveis e reconfiguradas de maneira surreal e perturbadora. Essas composições não apenas desafiam a percepção tradicional do corpo, mas também evocam uma tensão entre desejo, violência e fetichização da figura feminina. Influenciado pelo surrealismo e pela psicanálise, Bellmer explorou a maleabilidade do corpo como uma metáfora para o inconsciente, onde desejo e trauma se manifestam através da distorção da anatomia.

Ao multiplicar membros, inverter articulações e fundir torsos, Bellmer cria corpos que escapam da lógica naturalista. Suas obras transitam entre beleza e inquietação, onde o corpo feminino é simultaneamente um objeto de contemplação e um espaço de manipulação. Esse aspecto gera um debate crítico: sua desconstrução corporal desafia normas ou reforça a objetificação da mulher? A tensão entre libertação e submissão permeia sua obra, que tanto denuncia o controle sobre o corpo quanto o reinscreve em uma lógica fetichista.

No entanto, sua produção não está isenta de controvérsias. Suas esculturas de bonecas, de forte conotação erótica, geraram debates sobre a objetificação e a representação da figura feminina. Críticos apontam que há um componente perturbador na forma como Bellmer desmonta e reconfigura corpos femininos, sugerindo um erotismo violento e, em alguns casos, reminiscências de desejos fetichistas que podem ser interpretados como misóginos. Além disso, a Whitechapel Gallery, em 2006, enfrentou acusações de autocensura ao retirar algumas de suas obras de uma exposição, por receio de que fossem consideradas ofensivas. Essas questões reforçam a ambiguidade de seu impacto: um avanço artístico na desconstrução do corpo ou um reforço de fantasias problemáticas?

A influência de Bellmer ultrapassa o surrealismo e se conecta a questões contemporâneas sobre identidade, corporeidade e a fragmentação do eu. Sua abordagem antecipa discussões sobre a biopolítica do corpo, a reconfiguração da identidade na era digital e a representação da carne no imaginário artístico. No entanto, sua insistência na figura feminina como principal objeto de desconstrução levanta questionamentos éticos e simbólicos. Enquanto suas obras desafiam a estabilidade da forma humana, também recaem em padrões que reiteram o corpo da mulher como território de desejo e manipulação masculina.

Assim, sua obra continua a provocar reflexões ambíguas. Se por um lado sua desconstrução da forma humana abriu caminhos para novas abordagens artísticas sobre o corpo e a subjetividade, por outro, não escapa das críticas sobre a instrumentalização do corpo feminino como espaço de experimentação estética e psicanalítica. O legado de Bellmer permanece um território de interrogações, onde fascínio e desconforto coexistem, revelando tanto a potência quanto as limitações de sua exploração da anatomia humana.


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R 10 — Construção (1971), de Chico Buarque – O Corpo no Trilho, O Corpo na Estrada







“Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.”



A frase repete-se ao longo de Construção, música de Chico Buarque lançada em 1971. A letra narra o dia de um operário comum, descrevendo seus gestos habituais — sair de casa, beijar a esposa, caminhar para o trabalho — até que, de repente, ele cai e morre. Mas a forma como essa morte é tratada não carrega tragédia ou luto, e sim indiferença: ele atrapalha o trânsito. O corpo que, há pouco, fazia parte da engrenagem da cidade, transforma-se num contratempo.

A repetição dos versos reforça essa lógica. Pequenas variações mudam a ordem das palavras, mas o sentido final permanece inalterado. O operário cai sempre, e a cidade sempre continua. A morte, que deveria ser um momento de ruptura, não interrompe o mundo — apenas o atrasa por um instante, antes que tudo volte a funcionar normalmente.

O comboio parou. No início, um silêncio absoluto. Depois, resmungos. O tempo passou e alguém comentou que isso tem sido corriqueiro. O corpo no trilho já não era um evento, mas uma ocorrência frequente, mais um atraso na rotina. A morte, ali, já não surpreendia.

Esse detalhe fez com que tudo se tornasse ainda mais incômodo. O corpo era agora um dado estatístico, parte de uma repetição sem impacto. Ninguém questionava. Não havia espanto, nem indignação. Apenas o desconforto pelo tempo perdido, pelo desvio inesperado no percurso de volta para casa.

O silêncio no comboio ecoava outro silêncio — aquele que veio com a notícia da mãe encontrada numa autoestrada. Não estar lá não significa não ver. A mente cria a cena, projeta as imagens que nunca foram vistas, preenche as lacunas do que não pôde ser vivido. A estrada à noite. O corpo caído, imóvel. Os faróis iluminando, sem que ninguém possa fazer nada. O momento em que alguém encontra, o instante em que tudo já aconteceu.

Como em Construção, onde o operário cai de novo a cada estrofe, em diferentes ordens, mas sempre com o mesmo fim, a cena repete-se. E talvez seja essa a questão — o peso da repetição. O corpo no trilho, o corpo na estrada, os resmungos no comboio, a frase solta de que “isso tem sido corriqueiro”. A banalidade da morte transformada em rotina.

O comboio voltou a andar, o tráfego voltou a fluir, e o corpo que antes era um obstáculo desapareceu. Mas dentro, a imagem ficou, insistindo, tentando encontrar um lugar para existir. Talvez seja isso que nunca se resolve — a tentativa de dar contorno ao que ficou suspenso. Como se ao reviver esse instante, fosse possível modificá-lo, devolver-lhe um significado, fazê-lo parar de se repetir.

Mas o tempo não responde. Apenas segue, como o comboio que volta a andar, como a estrada que nunca para de receber corpos que se tornam ausência.



Link para a música no YouTube: https://youtu.be/cMwmBfEtiq0?si=jyKV3QA7bYWDQCQ0

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